As operações de compensação que envolvem créditos de natureza previdenciária constituíram, ao longo de décadas, verdadeiro calvário jurídico-tributário, tornando-se palco de acirradas controvérsias entre o erário e os contribuintes, mormente quando se considera o intrincado arcabouço de exigências impostas pelo órgão fazendário federal.
Por vezes, tais compensações encontravam óbice intransponível nas divergências hermenêuticas acerca da legislação tributária; noutras ocasiões, deparavam-se com entraves como a draconiana exigência do trânsito em julgado de decisões judiciais individuais – mesmo quando já consolidados precedentes vinculantes emanados das cortes superiores, dotados de eficácia erga omnes; ou, ainda mais gravoso, na famigerada imposição de retificação das obrigações acessórias, procedimento este de alta complexidade e custos proibitivos.
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Ou seja, mesmo após lograrem êxito em obter pronunciamentos jurisdicionais definitivos que reconheciam a inexigibilidade de contribuições previdenciárias sobre determinadas rubricas, os jurisdicionados eram surpreendidos pela exigência que mais se assemelhava a um castigo: a obrigatoriedade de retificar a totalidade das obrigações acessórias – desde as pretéritas GFIP até os atuais eSocial e DCTFWeb – como condição sine qua non para o exercício de direito já chancelado pelo Poder Judiciário.
Conscientes do labirinto criado pela administração fazendária, inúmeros contribuintes acabavam desistindo das compensações pretendidas ou, alternativamente, buscavam refúgio no Poder Judiciário, almejando mitigar os riscos inerentes a eventual procedimento fiscalizatório que culminasse na glosa de suas compensações, bem como esquivar-se das penalidades pecuniárias impostas pelo fisco em sua sanha arrecadatória.
Considerando que tais litígios judiciais frequentemente se arrastam por períodos que desafiam a própria noção de duração razoável do processo – não raro ultrapassando décadas –, os contribuintes viam-se confrontados com hercúlea tarefa operacional: a antiguidade dos períodos abrangidos, o volume de dados a serem recuperados e reprocessados, aliados à carência de ferramentas tecnológicas adequadas, transformavam o processo de retificação em obstáculo desproporcional, frequentemente inviabilizando a própria fruição dos créditos legitimamente constituídos.
Neste contexto de adversidades sistêmicas, a verdade inconteste é que, historicamente, a Receita Federal sempre exigiu como condição inexorável para a compensação de créditos previdenciários reconhecidos judicialmente a prévia retificação das correlatas obrigações acessórias.
Paradigmático exemplo desta orientação foi materializada na Solução de Consulta Cosit 34/2024, de efeito vinculante, mediante a qual o fisco estabeleceu como condição para a compensação de créditos previdenciários reconhecidos por decisão judicial transitada em julgado a antecedente retificação das obrigações acessórias correspondentes – notadamente eSocial e DCTFWeb.
Outro precedente emblemático é a Solução de Consulta Cosit 77/2018, oportunidade em que a autoridade fazendária já havia se pronunciado acerca da necessidade da retificação da GFIP nos casos de compensação de créditos previdenciários reconhecidos por pronunciamento judicial (em período anterior à implementação do eSocial).
Em linhas gerais, o antigo entendimento – repita-se, vinculante – decorria de interpretação das disposições constantes na IN RFB 2.055/2021, que, na mesma linha da antiga IN RFB 1.717/2017, condiciona a restituição de contribuições previdenciárias recolhidas indevidamente à prévia retificação das respectivas declarações.
A lógica imposta pela Receita Federal até então desconsiderava o próprio caráter declaratório da obrigação acessória – acessório, aliás, que aqui ameaçava, paradoxalmente, subverter o principal. Em lugar de viabilizar o exercício célere do direito creditório judicialmente reconhecido, forjava-se verdadeiro labirinto burocrático que frustrava o direito material sob o pretexto do controle formal.
Igualmente desconsiderava-se o fato incontornável de que o legislador pátrio, ao promulgar a Lei de Custeio da Seguridade Social (Lei 8.212/91), jamais estabeleceu como pressuposto para a restituição ou compensação de contribuições previdenciárias reconhecidas como indevidas pelo judiciário a prévia retificação das obrigações acessórias.
Não obstante a longevidade desta controvérsia que antagonizava contribuintes e fisco, eis que surge movimento de magnitude histórica: a administração fazendária federal decidiu, em gesto de inusitada lucidez e racionalidade, facilitar a operacionalização das compensações tributárias com créditos previdenciários obtidos mediante pronunciamento judicial definitivo.
Trata-se da Instrução Normativa RFB 2.272, promulgada no último dia 21 de julho, que alterou substancialmente a IN 2.055/2021 para, finalmente, eximir os contribuintes da obrigação prévia de retificação das obrigações acessórias quando os créditos de contribuições previdenciárias decorrerem de medida judicial.
Com esta mudança normativa, a IN RFB 2.055/2021, diploma que regula o instituto das compensações, passou a consignar expressamente que “a compensação de contribuições previdenciárias declaradas incorretamente fica condicionada à retificação da declaração, exceto se o direito creditório for decorrente de decisão judicial transitada em julgado” – dispositivo este inserido no parágrafo 4º do artigo 64 da referida instrução normativa, por força da IN RFB 2.272/2025.
Felizmente, além de desburocratizar a recuperação do crédito reconhecido judicialmente, a nova orientação também elimina uma importante fonte de preocupação para as empresas: os reflexos da compensação nos benefícios de seus empregados e ex-empregados.
Isto porque a modificação da base de cálculo das contribuições patronais poderia – e ainda pode, em determinadas circunstâncias – repercutir nos parâmetros de concessão de benefícios previdenciários diversos, tais como aposentadoria, auxílio-doença, entre outros.
Configura-se, destarte, de grande avanço normativo que, simultaneamente, salvaguarda os interesses dos segurados da Previdência Social – os quais, via de regra, não integram a relação processual judicial – contra eventuais prejuízos nos critérios de concessão de seus benefícios, e, ao mesmo tempo, desonera as empresas do fardo operacional representado pelas retificações.
Todavia, o gesto da administração fazendária, conquanto louvável, não deve ser interpretado como benesse ou liberalidade. Constitui, em verdade, o patamar mínimo de civilidade que se espera de uma administração tributária genuinamente comprometida com o respeito às decisões emanadas do Judiciário e com a efetividade dos direitos fundamentais dos contribuintes. A revogação da exigência de retificação das obrigações acessórias não se limita a corrigir mera inconsistência técnica; representa a superação de uma forma silenciosa de resistência institucional.
Não se cuida meramente de desburocratização. Trata-se, fundamentalmente, de reverenciar o princípio basilar da separação dos poderes, de reconhecer que, uma vez declarado o crédito pelo Judiciário, incumbe à administração fazendária, enquanto órgão do Executivo, produzir mecanismos que viabilizem sua fruição pelo jurisdicionado, abstendo-se de constituir novos obstáculos sob o verniz de formalidades processuais.
Ademais, denegar ao contribuinte o exercício de seu direito creditório judicialmente reconhecido sob o pretexto da necessidade de prévia retificação configurava violação flagrante aos princípios da verdade material e da boa-fé objetiva, porquanto a existência do crédito já havia sido formalmente atestada pelo Judiciário.
Que esta mudança normativa não se configure como exceção efêmera, mas como prenúncio de novo paradigma nas relações entre fisco e contribuinte: menos beligerância, mais racionalidade; menos formalismo estéril, mais efetividade dos direitos fundamentais.